sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Hermann Hesse escreveu um livro intitulado O Jogo das Contas de Vidro. É a estória de uma ordem monástica na qual os seus membros, em vez de gastarem o seu tempo com ladainhas e exercícios semelhantes, se dedicavam a um jogo que era jogado com contas de vidro coloridas. Eles sabiam que os deuses preferem a beleza às monótonas repetições sem sentido. O livro não descreve os detalhes do jogo. Mas eu sei do que se tratava. Enquanto escrevo ouço a Sonata n. 27, op. 90, de Beethoven. É linda. As contas de vidro coloridas de Beethoven, nesta sonata, são as notas do piano. Vitrais também são jogos de contas de vidro. Foi na poesia de uma poetisa minha amiga, ex-aluna, Maria Antônia de Oliveira, que pela primeira vez vi a vida como um vitral.

“A vida se retrata no tempo
formando um vitral,
de desenho sempre incompleto,
de cores variadas,
brilhantes, quando passa o sol.
Pedradas ao acaso
acontece de partir pedaços
ficando buracos,
irreversíveis.
Os cacos se perdem
por aí.
Às vezes eu encontro
cacos de vida
que foram meus,
que foram vivos.
Examino-os atentamente tentando lembrar
de que resto faziam parte.
Já achei caco pequeno e amarelinho
que ressuscitou
de mentira, um velho amigo.
Achei outro pontudo e azul, que trouxe em nuvens
um beijo antigo.
Houve um caco vermelho
que muito me fez chorar,
sem que eu lembrasse
de onde me pertencera.“
(Ceriguela, p.14)

Esses cacos de vitral, essas contas de vidro coloridas - isso meu corpo e minha alma amam, para todo sempre. O amor não se conforma com o veredicto do tempo - os cacos do cristal se perdendo dentro do mar, as contas de vidro colorido afundando para sempre no rio do tempo.

Quero que tudo que eu amei e perdi me seja devolvido. Todas essas coisas moram nesse imenso buraco dolorido da minha alma que se chama saudade.

Para isso eu preciso de Deus, para me curar da saudade. Dizem que o remédio está no esquecimento. Mas isso é o que menos deseja aquele que ama. Conta-se de um homem que amava apaixonadamente uma mulher que a morte levou. Desesperado, apelou para os deuses, pedindo que usassem seu poder para lhe devolver a mulher que tanto amava. Compadecidos, eles lhe disseram que devolver a sua amada eles não podiam. Nem eles tinham poder sobre a morte. Mas poderiam curar o seu sofrimento, fazendo-o esquecer-se dela. Ao que ele respondeu: “Tudo, menos isso. Pois é o meu sofrimento o único poder que a mantém viva, ao meu lado!“

Também eu não quero que os deuses me curem, pelo esquecimento. Quero antes que eles me devolvam minhas contas de vidro. E é assim que eu imagino Deus: como um fino fio de nylon, invisível, que procura minhas contas de vidro no fundo do rio e as devolve a mim, como um colar. Não por ele mesmo (sobre quem nada sei), mas por aquilo que ele faz com minhas contas....

Quero Deus como um artista que cata os cacos do meu vitral, partido por pedradas ao acaso, e os coloca de novo na janela da catedral, para que os raios de sol de novo por eles passem.

O que eu quero é um Deus que jogue o jogo das contas de vidro, sendo eu uma das contas coloridas do seu jogo...

(Transparências da eternidade, Verus, 2002)